Quinta-feira, 28 mar 2024
 
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Juiz de garantias continuará a perseguir pobres, diz magistrado

(Foto: Reprodução)

Ter um juiz responsável apenas pela fase de inquéritos é “uma ótima ideia”, mas não muda a “mentalidade policial” dos magistrados, afirma o juiz Luís Carlos Valois

Afinal de contas, a criação de um juiz de garantias é a solução para as violações de direitos que essencialmente que negros, pobres e periféricos enfrentam? Para o juiz Luís Carlos Valois, mestre e doutor em direito pena pela USP (Universidade de São Paulo) e pós-doutorando de criminologia pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha, não. Sua análise é de que a mentalidade policial e combativa adotada por juízes, que tem influência direta nestas violações, não mudará com a criação de um novo cargo.

O surgimento do juiz de garantia se dá com o pacote anti-crime sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O texto determina a criação desta figura após inclusão no Congresso Nacional e contra o desejo do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. A nova lei separa os processos em duas etapas: a de investigação, a ser comandada pelo juiz de garantias, e a de instrução/julgamento, a ser feita por outro magistrado. Atualmente, as duas fases tinham um mesmo juiz encabeçando os trabalhos.

Valois vê dificuldades na aplicação da lei em comarcar com apenas um juiz, mas que este é o menor dos problemas. O mais grave é não alterar um modo de atuar combativo da Justiça.

“Porque acho que o impacto é pequeno: o processo, tudo de dano que um judiciário persecutório, militarizado, um judiciário policial pode causar ele causa no inquérito”, pontua o magistrado, que cita o exemplo do Dipo (Departamento de Investigações Policiais) de São Paulo, em que há esta separação desde 1984, mas os problemas seguem ocorrendo.

Ponte – Qual vai ser o impacto do juiz de garantia na prática? Teremos uma Justiça melhor com esse sistema?

Luís Carlos Valois – Para falar a verdade eu sou muito cético com relação a essas soluções para o poder judiciário por intermédio de legislação, principalmente uma que cria um cargo a mais. Idealmente falando, esse juiz de garantias é bom, uma ótima ideia você ter um juiz que acompanha o inquérito. É a fase de produção de provas, a parte de investigação, quando se defere busca e apreensão, mandado de prisão e, depois que inicia o processo, se a pessoa for denunciada, um outro juiz vai condenar. Só que sabemos como é formado o judiciário, onde temos uma mentalidade de combate, parecida com a mentalidade da própria polícia militar de que há inimigos a serem combatidos.

Ponte – Como isso se dá no dia a dia?

Luís Carlos Valois – Temos varas de combate ao crime organizado, a entorpecente, à violência doméstica… Quer dizer, temos uma mentalidade no Brasil muito deturpada. Uma Vara não pode ser de combate, tem que ser de Justiça. O juiz tem sido formado nessa mentalidade de combater o crime e isso é péssimo. Então o juiz que vai acompanhar o inquérito é um juiz com essa mentalidade de combate. Tudo que se pode alegar de arbítrio, de abuso, de violação hoje em dia é de um juiz na fase do inquérito policial. Isso não vai mudar, vai continuar. São os mesmos juízes que vão continuar com o inquérito. Tudo que se viu e se pode perceber de violação não vai deixar de existir porque um outro juiz estará. É muito parecido com o Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais) de São Paulo.

Ponte – Os negros, pobres e periféricos, vitimas do sistema de justiça que temos, poderão ser beneficiados? Pode haver a diminuição de condenados sem provas como casos acompanhados pela Ponte?

Luís Carlos Valois – Acho que não. Serão os mesmos juízes fazendo a mesma coisa, só que, quando chegar no processo, já está quase tudo definido, é muito difícil ter diferença. Temos um judiciário com mentalidade persecutória, de combate, então o mesmo juiz que estava fazendo todos os mandados de busca e apreensão em favela, nada disso vai mudar porque é o mesmo juiz que continuará fazendo isso, só que muda o juiz do processo, uma coisa que vem depois… Porque acho que o impacto é pequeno: o processo, tudo de dano que um judiciário persecutório, militarizado, um judiciário policial pode causar ele causa no inquérito. O processo vai amenizar muito pouco. Inclusive tem pessoas que passam 3, 4, 5 anos presos aguardando para ser investigado e denunciado. Os danos que o processo persecutório, violento que temos no Brasil, não vão ser minimizados. Temos o nome juiz de garantia, mas a função dele será a mesma do juiz do inquérito, que é hoje em dia. Vamos ter um juiz que vai julgar com menos influência desse inquérito, vamos ter, mas os danos que são causados pelo processo penal hoje em dia para a população pobre são causados durante o inquérito. Como será o mesmo juiz selecionado do mesmo local, mesma faculdade, mesma postura, mesma ideologia, isso não vai mudar muita coisa.

Ponte – Quais dificuldade teremos para a implementação?

Luís Carlos Valois – Você vê: o próprio [estado de] São Paulo, que tem toda uma estrutura, só possui Dipo na capital. Quer dizer, essas comarcas menores vão ter que fazer rodízio de juízes e isso vai fazer com que o processo seja mais demorado. Vejo uma certa dificuldade nas comarcas pequenas na questão das audiências de custódia, que deve ser um juiz presencial.

Ponte – Haverá algum impacto específico?

Luís Carlos Valois – Se for um juiz que trabalhe por vídeo-conferência fazendo o juiz de garantias, ele não estará presente na audiência de custódia, que é o momento mais importante da presença de um juiz. É onde ele verifica se houve violência, ouve a pessoa, o preso vê o juiz realmente. É muito importante. Se o juiz de garantia não estiver na comarca, diminui muito a função da audiência de custódia. Óbvio que se tem custos e se tem um problema, que acho mais incoerente, que mais me choca: todo mundo está preocupado com a qualidade de um processo penal, criando mais cargos de juízes. ‘O judiciário que se vire, que crie a quantidade de varas, tem que melhorar o processo’ e nós temos um sistema penitenciário superlotado, presos dormindo um por cima do outro, sem escola, sem saúde, sem enfermaria, sem remédio, um sistema desse jeito. Não sei como se faz lei no Brasil sem prioridades, sem olhar o contexto. Nós precisamos de mais vagas nas penitenciárias ou mais vagas para juiz? Tudo bem, ideologicamente é bonito e olhando o contexto, o geral, como explicamos para a população que estamos criando mais cargos de juízes e sistema penitenciário vai continuar desse jeito, uma fábrica de criminalidade, de morte, de doença? A questão da prioridade política criminal. ‘Ah, o processo vai ficar mais bonito assim’, mas não se olha o contexto da sociedade, do sistema de justiça criminal. É a coisa que mais me choca na discussão toda.

Ponte – Cria mais burocracia?

Luís Carlos Valois – Não, vai criar dificuldade. No processo em si, continua o mesmo, só muda que será um novo juiz no inquérito. Então há dificuldade nas comarcas pequenas, temos algumas com quantidade ínfima de moradores que não comportam dois juízes, vão ter que fazer rodízio ou vídeo-conferência. Os defensores do juiz de garantias são pessoas que eu respeito e admiro muito, inclusive a associação Juízes para Democracia defende, vários juízes que eu respeito defendem. Sou um cara que trabalha com sistema penitenciário e estudo justiça criminal, polícia… acho que a prioridade não devia ser essa. Tínhamos que mudar muita coisa para ver um juiz de garantia realmente, não só um cargo.

Ponte – Por qual motivo juízes federais são contra a ideia? Como acha que teria sido a Lava-Jato se houvesse um juiz de garantia?

Luís Carlos Valois – Óbvio que tem um pouco a ver com a pergunta da Lava-Jato. Esse negócio do combate fere muito a ideia desse pessoal que quer a Justiça como uma Justiça combatente, com o judiciário buscando legitimidade na população pela ideia de combate. Esse nome, juiz de garantia, é um negócio que fere qualquer ideia. Ninguém se rebelou quando se criou uma vara de combate ao crime organizado, agora, juiz de garantia todo mundo se revolta. Eles são contra pela ideia de um juiz de garantia, ou seja, como se o judiciário como um todo não pudesse ser um judiciário de garantias. Existe uma ideologia no judiciário, essa postura policial que impede de se ver, causa incômodo dele ter essa figura. A questão de legitimidade é porque tem perdido com a população em alguns estados, no Amazonas não, mas lemos nas notícias, lugares com vários benefícios, auxílios para juízes. Para poder ter legitimidade, o que se faz? Prende, é combatente, é policial. Se tem essa postura para ter legitimidade com a população, que não ter perspectiva, não tem muita esperança e acaba depositando tudo nessa postura policial. O judiciário, para manter a estrutura de palácio, de corte, postura elitista mesmo, ele acaba sendo populista, o que chamo de populismo penal. ‘Vamos prender, criar vara de combate, expedir mandado de busca e apreensão, juiz não pode ser bonzinho porque é o que a população quer’. É isso: o juiz de garantia, para essa gente, fere essa imagem.

Ponte – E sobre a Lava-Jato?

Luís Carlos Valois – O que iria acontecer, o [Sérgio] Moro [atual ministro da Justiça e Segurança Pública] seria o juiz de garantia e a Marcela Hardt a juíza do processo, ou o contrário? Não sei se iria mudar alguma coisa. Na verdade, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) me proíbe de falar sobre processo em andamento, de criticar inclusive o judiciário, mas minha crítica, é bom que se diga, é totalmente à favor do judiciário, que caminhe num sentido de ser mais justo, um sentido de justiça com ‘J’ maiúsculo, uma justiça social, verdadeira. Não um judiciário que é polícia, que é combatente. Minha crítica toda é de fundamento para que seja mais respeitado no mundo todo como um órgão de Justiça.

Ponte – E a lei Maria da Penha que talvez não entre no esquema de juiz de garantias. Acha positiva a decisão? Por que?

Luís Carlos Valois – Não sei porque excluíram a Maria da Penha e não sei se é positivo ou negativo a exclusão. Acho que o juiz de garantia vale para qualquer vara, se vale para a comum, por que não para a Maria da Penha? Ou, por acaso, a violência doméstica não precisa que seja um outro juiz no processo para que a pessoa que o responde tenha um juiz imparcial também? Não vejo nenhum motivo para excluir essa lei.

Arthur Stabile e Maria Teresa cruz, da Ponte Jornalismo.