Sábado, 20 abril 2024
 
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Precatórios: pedaladas ocultas nos orçamentos de estados e municípios

(Foto: www.sociedadesp.com.br)

O tema é quase místico. Ao suscitar a palavra “precatório" em determinadas rodas de conversas, o corajoso que ousou a aspergir o vocábulo logo é alvo de olhares desconfiados. O preconceito criado no intelecto das pessoas comezinhas é tão grande que o debate sério sobre o tema ficou sobrepujado.

Esqueçam isso! Coisa do passado que não faz mais sentido! Primeiro, que não é título e, segundo, recriminar o atravessador foi a tática usado pelos governos estaduais à época em que se disseminaram “consultorias" que diziam “pagar impostos” com precatórios.

Celeuma à parte é interessante notar a atual facilidade de engajamento da população em debater os temas relativos aos problemas fiscais do Governo Federal. Revistas, jornais, sites, blogs. Muitos especialistas. Não que isso não seja importante. Porém, é missão do jurista fazer lembrar à todos os recém-politizados alguns problemas que assolam, sem solução aparente, os orçamentos estatais há décadas.

Sem medo de errar: o maior problema fiscal que o nosso estado de direito desenvolveu são justamente as dívidas dos entes estatais oriundas de condenações judiciais.

Isso mesmo! Os precatórios!

Se o interesse no problema orçamentário é legítimo, torna-se fundamental que o precatório esteja em pauta, em força igual - ou maior - do que os próprios empréstimos maquiados obtidos pelo Governo Federal através dos bancos públicos sem autorização.

Para começo de conversa, se o precatório é uma dívida que veio de um processo judicial que o ente estatal perdeu, há de se buscar compreender as causas dos diversos processos.

Sem novidades: a malversação de dinheiro público e a gestão temerária são as grandes origens de processos judiciais contra os governos. No entanto, o importante é notar que, por diversas vezes, o ato ilícito judicialmente questionado advém de decisões conscientes dos governos e governantes. A não realização de pagamentos de proventos do funcionalismo, o descumprimento de contratos, a desapropriação sem a correspondente indenização. Tudo em nome da “austeridade fiscal”. Na lógica do governante, por não se ter pago (o provento, o contrato, a desapropriação, etc.), logo se economizou recursos.

Ora! Que austeridade fiscal é essa que, embora consista na ausência de saída de caixa (pagamento), cria um passivo maior e, pior, fora das previsões do orçamento e para as próximas gerações. Acreditem! A nossa legislação não olha para este “pequeno” detalhe.

Em linguagem técnica, a contabilidade nos lembra que a origem de todo ativo é um passivo. Isso mesmo! Olhem só que interessante: um provento não pago é um passivo; um contrato não pago é um passivo; uma desapropriação insuficientemente indenizada é um passivo. E agora eu pergunto para os debatedores politizados: e um empréstimo maquiado de um banco público? O que o é? Isso mesmo: um passivo!

A luta da Lei de Responsabilidade Fiscal é para que os governos não criem passivos além dos comprometimentos orçamentários possíveis. Ao não enxergar a gestão inócua que cria novas contingências jurídicas, a legislação deu brecha para a pedalada oculta: desenvolvem-se novos passivos sem que estes sejam contabilizados nas contas do governo que deu causa. O ato ilícito será contabilizado quando houver a instauração do contencioso, o que ocorre, em geral, anos após, inclusive, à aprovação das contas do governo que deu causa àquela obrigação.

Daí surge a primeira conclusão: as contas públicas aprovadas pelo Tribunal de Contas e referendadas pelo respectivo Legislativo, podem - e devem! - sofrer revisões posteriores em caso de condenação judicial do ente estatal pelo ato ilícito daquela gestão auditada. É o óbvio!

Caso assim não seja, está permitida e referendada a pedala fiscal oculta. A revisão das contas com base nas condenações judiciais futuras, que consolidam passivos gerados em atos ilícitos de governantes anteriores, é dever que se impõe, sob provocação do Ministério Público, ao Tribunal de Contas respectivo. Ainda existe a Ação Popular, que, embora em esquecimento, deve ser estudada para, eventualmente, aumentar o acervo de meios em favor da sociedade.

A segunda razão para que o cidadão atilado às questões de regularidade fiscal atente-se para os precatórios, cinge-se na óbvia ilegalidade do descumprimento da Lei Orçamentária quando do não pagamento das condenações.

Os precatórios, como ordem de pagamento, depois de emitidos pelo Tribunal respectivo ao chefe do Poder Executivo, devem (obrigatoriamente) ser incluídos dentro da previsão - leia-se lei cogente - de gastos do respectivo ente. Ou seja, o governante encaminha uma mensagem de lei ao Legislativo dizendo que tem previsão de recursos para pagar todas as condenações judiciais, nos termos e prazos que a legislação permite. Ocorre que, em muitos entes da federação, todos os anos, estes recursos não são destinados para o pagamento de obrigações para as quais uma lei restou aprovada.

Não há dificuldade em entender que, se o governo não paga ao particular um determinado valor, que já está judicialmente confirmado, sem direito ao recurso, o valor orçado que era destinado àquele pagamento restou desviado para outra finalidade. Desviado!

Quando o governo não paga o credor judicial particular, depois de orçado o recurso em lei própria, está-se diante de circunstância financeira e economicamente idêntica aos famigerados empréstimos ocultos obtidos pelo governo federal com os bancos públicos. Este é o fato.

O parecer do TCU no julgamento das contas do Governo Federal revela entendimento de que a existência e permanência de valores no passivo de longo prazo com incidência de encargos é o suficiente para caracterizar operações de crédito. Assim, o não-pagamento dos precatórios orçados em lei constitui-se em empréstimos velados, e, portanto, geram efeitos jurídicos idênticos às pedaladas fiscais do governo federal, implicando em hipótese de desaprovação de contas, crime de responsabilidade e improbidade administrativa. Não nos esqueçamos da CPI dos Precatórios levada a efeito pelo Senado Federal nos idos de 1997, cujo objeto foi justamente a emissão ilegal de títulos (empréstimo público) para, supostamente, saldar os débitos judiciais.

É verdade que a escassez de recursos gera uma dificuldade de gestão ante à infinitude de necessidades. Mas este é o papel de cada um de nós, e aí se incluem todos os governos. Equilibrar os recursos disponíveis com as necessidades é justamente a habilidade que se espera daqueles que são ungidos pelo mandato eleitoral.

Não é possível que, em compasso com a atual reflexão (benéfica) que o Brasil esteja fazendo sobre a necessidade de atenção à causa fiscal, o tema dos precatórios seja simplesmente esquecido. Se aos olhos da sociedade ele é aplacado pelo preconceito, a classe jurídica tem quase jogado a toalha por diagnosticar um problema economicamente tido por indecifrável. Até o STF, que já julgou pela inconstitucionalidade das alterações produzidas a pedido dos (desesperados) governantes através PEC do Calote, já está sem rumo e querendo desdizer o que o disse.

Se não tirarmos as vendas do preconceito, muitas serão as pedaladas que passarão incólumes. Pensem nisso: os precatórios estão para os estados e municípios, tanto quanto os empréstimos dos bancos públicos estão para o planalto central. Pedaladas. Nada mais do que pedaladas.

*Paulo Henrique Berehulka é advogado do escritório A. Augusto Grellert Advogados e membro da Comissão de Precatórios da OAB/PR.