Quinta-feira, 28 mar 2024
 
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Artigo: O combate ao poder invisível

Parcela considerável do contencioso que cerca a crise que afunda o país gira em torno das relações promíscuas entre a gestão pública, os políticos e os círculos de negócios. Esse é o triângulo que sustenta os bolsões de corrupção que têm se alastrado nos subterrâneos do Estado, aqui e alhures, bastando ver o que também ocorre em outros países de feição democrática.

É o que também descreve Roger-Gerard Schwartzenberg no clássico Sociologia Política, no capítulo em que trata da tecnodemocracia. Ao se considerar que a res publica sempre despertará a atenção dos agentes negociais, ante a inexorável tendência de conjunção de interesses dos universos público e privado, resta imaginar uma forma capaz de dar plena transparência às relações entre o Estado e seus prestadores de serviços.

Nessa complexa teia de relacionamentos, emerge o fenômeno do lobby. Há um projeto em tramitação no Congresso que trata dessa matéria. O lobby carrega forte conotação negativa no ambiente político, sendo associado à corrupção, tráfico de influência, manipulação das estruturas governativas, enfim, apropriação de fatias do Estado pelas forças que usam as armas do patrimonialismo, mazela de nossa administração pública. Daí a necessidade de abrir a redoma em que se esconde o lobby.

Pincemos a lição de Bobbio: a democracia é o governo do poder público em público, jogo de palavras que aponta para a ideia de “manifestação, evidência, visibilidade”, em contraposição à coisa “confinada, escondida, secreta”. O filósofo arremata: “Onde existe o poder secreto há, também, um antipoder igualmente secreto ou sob a forma de conjuras, complôs.” Donde se conclui que não resta outro caminho que o de inserir a atividade lobística na esfera dos canais da democracia participativa.

A intermediação de interesses privados junto à esfera pública faz-se presente em todos os ciclos históricos, frequentando, inclusive, os primeiros dicionários da política. Rousseau, no Contrato Social, perorava sobre a oportunidade de cada cidadão participar nos rumos políticos, garantindo haver “inter-relação contínua” do “trabalho das instituições” com as “qualidades psicológicas dos indivíduos que interagem em seu interior”.

Esse é o fundamento da democracia participativa, pela qual os cidadãos e suas representações devem ser livres de coerção para influir de maneira autônoma no processo decisório. De certa forma, o lobby bebe nessa fonte. O ideário começou a ser conspurcado, à sombra do poder invisível que age nos subterrâneos do Estado e que forma uma teia de interesses espúrios e alianças táticas com máfias, grupos e castas que se alimentam da corrupção.

O rompimento dos diques éticos acentuou-se por conta da desintegração das fronteiras ideológicas, características da política na sociedade pós-industrial. Desvirtuando-se do ideário original, os lobbies se tornaram sinônimo de interesses escusos. Daí a necessidade de legalizar o lobby nos moldes praticados nos Estados Unidos.

Os lobistas terão nome, endereço e dirão a quem estão servindo. Desenvolverão uma articulação aberta, escancarando modos de atuação, identificando grupos e coletividades representadas e a natureza dos interesses envolvidos. O marco regulatório sobre a intermediação de interesses grupais e coletivos junto às esferas da administração pública virá, portanto, formalizar uma prática hoje informal. Demandas gerais, difusas, particulares, explícitas ou latentes, passarão pela lupa da mídia. Dessa forma, a democracia estará mais próxima do seu real significado: o regime do poder visível.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato.