Sábado, 20 abril 2024
 
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ARTIGO - A necessária correção de rumos

Brasil - Gilbertinho, diminutivo que Lula usa para se referir a Gilberto Carvalho, ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, tem assumido mais o papel de exorcista do que o de ex-seminarista, ao fazer periódicas avaliações da presidente que despacha a poucos metros dele no Palácio do Planalto. Ao invés de um Te Deum de Ação de Graças em louvor à administração que chega ao término do primeiro mandato, o ministro acaba de “exorcizar” mais alguns demônios que perseguiram a mandatária nos últimos quatro anos, dentre eles, “a falta de diálogo com os principais atores na economia e na política”, que teria gerado pouco avanço em demandas dos movimentos sociais, particularmente nas frentes da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas. A senadora Marta Suplicy também decidiu não cantar um Hosana nas Alturas e, ao deixar de supetão o cargo de Ministra da Cultura, atirou no coração do governo, simbolizado pela área econômica, para a qual defende uma nova equipe capaz de resgatar “a confiança e a credibilidade” e comprometida com “a estabilidade e o crescimento”.

Causa perplexidade o fato de o canhonaço partir de integrantes do grupo comandado pela maior liderança do PT, o ex-presidente Luiz Inácio, em torno do qual os dois ministros chegaram a entoar, meses atrás, o canto “Volta, Lula”. Digamos que não tenha havido por parte do guru conhecimento prévio dos balaços ou mesmo autorização para que tal “campanha negativa” fosse desfechada. Sobra a hipótese de um sinal amarelo aberto no semáforo lulista, espécie de aviso para que a presidente Dilma mude os rumos do governo, a partir de reforma profunda na economia e de maior envolvimento com a esfera política e a sociedade organizada. A verdadeira razão não seria esta? A mandatária precisa substituir as cartas de seu desgastado baralho, tarefa que exigirá mudança de atitude. Nesse ponto, a pergunta central, recorrente nas esferas política e produtiva, dispara outras: Dilma mudará a índole? Dará mais autonomia aos principais ministros? Descentralizará a gestão? São questões complexas, ainda mais quando o axioma criado pelo conde de Buffon em 1753 na Academia Francesa–le style est de l’homme même – continua na ordem do dia.

Em se tratando da presidente, pelo que se ouve e o que se sabe, emerge um perfil de forte personalidade, ciosa de seu mando, centralizadora, atenta aos detalhes, de reações ágeis, em quem os psicólogos, pela clássica classificação de Hipócrates, poderiam enxergar traços temperamentais mais próximos aos tipos coléricos e sanguíneos (em que a força de excitação é maior ou iguala a da inibição) e mais distantes dos melancólicos e fleumáticos. Mesmo assim, há de se apostar na hipótese de mudanças (“novas ideias”), conceito que ela própria expressou na campanha. E isso pressupõe alteração na forma de pensar e agir. Significa intuir que ela vestirá o manto reformista. Ora, para cumprir essa missão, o reformador, como lembra Samuel Huntington, carece de habilidade política mais alta que a habilidade do “revolucionário”, porquanto este precisa ser um político magistral para obter sucesso; já “o reformador de sucesso sempre o é”, diz o professor. A presidente Rousseff atravessou o quadriênio do primeiro mandato ensimesmada e desconfiada da política. Teve que abrir espaços para partidos e líderes, mas o fez sob o império de prementes conveniências, procurando manter, porém, certa distância dos políticos. Se o estilo é a pessoa e se ela aprecia conservar o perfil técnico, é bastante compreensível sua maneira de administrar o apetite da política.

Ocorre que nas democracias representativas, os governos não sobrevivem sem as redes de comunicação com a sociedade, sem os “pisca-piscas”, os sinais de alerta gerados pelos circuitos políticos, representados por partidos e Congresso. Alguns governantes soçobraram porque se isolaram em seus palácios. Lembre-se de Jânio e de Collor. Poderosos mas solitários, padeceram a “solidão do poder”. De Gaulle, com seu gaullismo que elevou ao extremo a ideia de auto-suficiência da França, refugiava-se no Eliseu; Nixon se mantinha afastado do público, da imprensa e dos partidos, inclusive o seu, o republicano, transformando Campo David, a casa de campo, numa fortaleza blindada; Stalin, que se julgava onisciente e infalível, vivia trancado no Kremlin. Bajulados por uma “sociedade de corte, recusando-se a ouvir as demandas sociais e políticas, estes governantes deram vazão ao que se convencionou chamar de “autismo de Estado”. Nossa presidente não pode se ocultar na muralha do isolamento. Principalmente numa quadra em que deverá tomar decisões duras, partindo-se do princípio de que será impraticável combinar sacrifícios econômicos e recessão transitória com crescimento, expansão do emprego e melhoria de programas sociais.

Deve estar preparada para sentir o governo descer na avaliação popular, manter-se por um tempo nesse nível e, em seguida, recuperar os pontos perdidos. Essa tarefa carece de um duro programa de ajuste na economia, situação que obrigará a governante a evitar a deterioração de seu peso político. Donde se infere a necessidade de canais desobstruídos entre o Palácio do Planalto e as Casas congressuais. Urge ainda considerar que o Brasil passou a conviver com o ciclo das ruas. E é lógico que nessa quadra de ampla locução social os governantes de todas as instâncias não podem estar longe das massas. Sob essa teia de alterações na fisionomia social e diante de pressões políticas que, a cada dia, se tornam mais agudas, não resta à presidente da República alternativa que não seja a de criar sintonia fina com o clamor das ruas e a real politik. Será que os canhões de Gilberto Carvalho e Marta Suplicy continham essa munição? Se a intenção era a de alertar sua Excelência sobre as nuvens plúmbeas que se descortinam no horizonte, o recado foi dado. Mas a dúvida persiste: por que o ataque público? Por que o PT atira contra o PT? Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação.